Há anos, dias, horas, minutos, semanas, momentos, e outras medidas de tempo gastas na produção do “não escrever”. Não escrever é trabalhar, e quando não é trabalhar no trabalho remunerado é trabalhar em trabalho não remunerado como cuidar dos outros, e quando não é trabalhar no trabalho não remunerado como cuidar, cuidar de um corpo humano, e quando não é cuidar de um corpo humano muitas horas, semanas, anos e outras medidas de tempo gastas é cuidar da mente lendo ou aprendendo e quando não é ler ou aprender e também fazer coisas (como roupas, comida, plantas, artesanato, itens de decoração) e quando não é ler e aprender e trabalhar e fazer e cuidar e se preocupar com política, e quando não é política é também o tipo de receituário médico que é compulsão, sexo na maioria das vezes ou álcool, cigarros, drogas, rompantes amorosos, produtos culturais, internet também, então, o tempo gasto admirando espaço que não é uma tela, também o tempo gasto dirigindo, particularmente quando levamos bastante tempo para chegar a algum lugar, e então trabalhar e voltar, levá-la pra escola e voltar, também.
Há doenças e ferimentos que produziram uma grande quantidade de não escrever. Há cinismo, decepção, ofensa política, coração partido, ressentimento, e análises realistas que produziram uma enorme quantidade de não escrever. Há reproduções que se parecem com doenças e ferimentos e tomam horas não escrevendo. Há o estar ansioso ou deprimido que tomam horas, mas não muitas afinal não se acredita em saúde mental. Há o trauma que é fantasticamente breve e claro e surge e persiste imprevisivelmente como se fosse pra sempre. O trauma é sempre um produtor direto ou indireto do não escrever. É como se a mente tivesse uma sombra e, em seguida, é só a sombra e, em seguida, não é a mente ou sua sombra, mas não é de jeito algum.
Há horas, embora não muitas, em aviões, e horas gastas com amigos na produção de não escrever. Há o conversar que é como escrever e que produz não escrever na mesma medida que escrever. Há um tanto de tempo não escrevendo que é não querer ter que falar com humanos a não ser se for pra transar ou convencê-los a ir embora. Há dormir que é frequentemente sonhar, quase o mesmo que escrever – sonhar é mais parecido com escrever do que não escrever de modo que não são invadidos em seus momentos por necessidades do trabalho remunerado, do trabalho de cuidar, expectativas sociais, amor romântico ou falar com pessoas. Há noites de sono que são frequentemente sobre fofoca, arquitetura, e modos de planejamento cívico e isso é mais próximo de escrever do que não escrever. Nos sonhos há sempre andar por aí, dar com muros, desvarios, e não ir de um lugar pro outro mas é frequente que andem comigo aqueles que amo mas não vejo frequentemente. Há fotografias que alguém tira de si mesmo e de outras pessoas e é aí que se encontra a produção do não escrever. Há se vestir e se despir, às vezes demais, particularmente quando as coisas fogem, morrem ou alguém precisa conhecer pessoas novas. Há fazer compras que é uma mulher fazendo compras.
Há em não escrever não muito tempo gasto em inveja que é uma pontada, parecida com aquele zumbido na tomada que serve de aviso para tirar o dedo dela, da bateria. Há um modo em que a vida dos outros parece quase sempre ineinvejável e somente são invejáveis enquanto "escrevem" quando todo esse tempo é gasto não escrevendo como neste instante em que não escrevo e lido com contas, correspondência, roupas sujas, meu quarto, meses de emails desde outubro colocados para frente embora agora seja junho, com meus trabalhos, com cuidar, com o conteúdo de minha geladeira, com meu pneu vazio, com a caixa de areia do gato, com minhas amizades, com Facebook, com meu corpo que quer se jogar na piscina, com meu corpo que quer se bronzear sob o sol com meu corpo que quer tomar chá com meu corpo que quer levantar peso na academia que quer tomar um banho e ficar limpo que quer um amante que quer sobretudo nadar e então há "não escrever". Há inveja também misturada com repulsa daqueles que não tem uma longa lista de não escrever a ser feita.
É fácil imaginar não escrever, acidentalmente e intencionalmente. É fácil porque houveram anos e meses e dias pensando maneiras de viver não escrevendo sabendo o que escrever consiste e pensando "não quero fazer isso" e "escrever toma tempo dos meus amados", e "escrever toma da minha vida e nada me dá a não ser dor e preocupação e o que não tenho" ou "escrever toma da minha conta bancária já vazia" ou "escrever me dá ideia que não preciso ou quero" ou "escrever é uma manufatura de desejos impossíveis" ou escrever é como literatura que é um mundo de monstros que é produção de cultura, eu odeio cultura que é o mundo de homens e mulheres abastadas.
impactado por esse texto. massa demais
Obrigada <3