Não sei onde li ou ouvi que varais de roupa são exposições de intimidade, que eles comunicam: cuidado, neurose, divórcio. Não sei se foi a própria Elena Ferrante, uma tia ou Malu que o disse, enquanto de nossa antiga varanda observávamos o varal do vizinho da frente, sempre um zelo – nunca misturava cores, imaginava os diversos cestos pela casa organizados em tom – ou neurose, ou neurose que é zelo. Mas sei que foi minha mãe – sempre ela, eu, como Elena Ferrante, sempre estou contando mais uma história de minha mãe – que me contou que minha vó, lavadeira, e suas vizinhas – lavadeiras, costureiras, cozinheiras – estendiam suas roupas juntas, mesmo que os quintais fossem separados, para aproveitar o ensejo, e expor suas intimidades e as do bairro, pendurando calcinhas ou lençóis manchados ou gritando "Josélia, você sabia…".
Em 2020, a Viradouro – escola de samba de minha família – ganha o carnaval do Rio com o samba "Viradouro de Alma Lavada", um samba em homenagem as Ganhadeiras de Itapuã, grupo que em rodas de samba canta a vida das lavadeiras da Lagoa de Abaeté, mulheres que do ganho – lavando ou vendendo quitutes – compravam alforria dos seus. Era durante a lavagem que arquitetavam planos de libertação e cantavam as canções suas, os Sambas de Mar Aberto, porque o ritmo redime. No ano, o rosto de minha vó Olímpia, uma lavadeira potiguá que veio ao Rio quarar as roupas da elite política niteroiense, estampou a camiseta de ensaio da escola. Olímpia era conhecida no Viradouro por botar seu corpo entre marido agressor e esposa, é o que fez por Rosa, vizinha com quem conspirava entre os varais. Afinal, é só expondo as intimidades que é possível conspirar. E óbvio que aos finais de semana, era sempre encontrada sentadinha nos ensaios da Viradouro, onde aprendia os sambas que cantava estendendo lençóis.
Entre varais, mulheres conspiram – e sim, apenas elas, que pelos outros zelam, conspiram entre os varais:
Me perdoem pelos frames de qualidade duvidosíssima, é o que tem. Impossível conseguir um torrent de qualidade do Un Complicato Intrigo di Donne de Lina Wertmüller, talvez, porque ensine rebuscados métodos de intriga, regidos, também, pela canção:
E ela que se chama Lina, como ela, Lina Cerullo, que apenas por Lenù era chamada de Lila, escreveu e dirigiu uma história sobre mães – sempre sempre elas – que, sob a sombra dos varais, conspiravam contra a heroína (Camorra) que havia levado seus filhos. Impossível não pensar em Lila, temendo que Rino, seu irmão, leve Rino, seu filho, pro mesmo vício, conspirava, não sabemos como, talvez, entre os varais com as outras mãe do Bairro. E de tudo do Bairro sabia, porque esse é o pressuposto de uma boa conspiradora. Se Elena respondesse meus emails, perguntaria: É Lina, uma Lina por causa de Lina?
Escrevo isso para dizer que todas as coisas que se dão no Viradouro explicam o mundo? Sim. Ou por que pôr as roupas no varal é confirmação sintética de que temos de expressar a sensação de e, a sensação de se, a sensação de mas, a sensação de por, com a mesma facilidade com que expressamos a sensação de tristeza ou sensação de frio? Sim. Mas, sobretudo, queria perguntar: onde estão os varais?
Nas fachadas, não. E nem nas varandas, que as secadoras acabaram com isso e com a longevidade das roupas. Talvez, haja aí uma outra conspiração: entre fast fashions e brastemp. Uns dirão para incluir a especulação imobiliária, afinal, como secar roupa em 45m2, mas não é exatamente por isso que as fachadas napolitanas são ornadas com todo tipo de tecido? O cômodo área de serviço ou de lavar roupa tem um DNA brasileiro, e não é à toa, que nos antigos apartamentos de 200m2 ela seja vizinha do amaldiçoado “quartinho de empregada”. Mas por que é que com tanto espaço ainda se mandava lavar a roupa"fora"? Fico pensando se não é herança, de novo, do colonialismo, dos antigos casarões joaninos, sem área, sem quintal, mas um ou dois escravizados. E por que não estender as roupas nas sacadas?! A resposta parece sempre a mesma, se os dejetos eram levados para os cais por outros, por que não as roupas? Mas que é estranho advir do medo de expôr a própria intimidade nas vias, a necessidade de entregá-la a outros, é. Aí irás me dizer que o outro é realmente um Outro, menos que um Mesmo, e que na rua pode ser que passe um outro Mesmo. Nada mais justo que o ganho da lavagem tenha se tornado um antro conspiratório à luz do dia, especialmente, à luz do dia.
2 - Cá, entre nós, habitam
Um vestido estendido sobre a cama, a cintura estreita, as mangas abertas, a saia, um trapézio, inflado por um sopro repentino, um intumescimento rápido, uma pontinha da saia fora do lugar. Temendo qualquer reprimenda – pois o vestido não é seu, nem é da sua mãe, de quem é você não sabe, mas ele precisa permanecer intocado até a dona vir prová-lo –, vai lá colocar a saia no lugar e espia, como é comum entre as crianças: dois braços, duas pernas, um troco, um pescoço arroxeado, cabeças e mãos fora do lugar. Às vezes, era questão de batizar os fantasmas. Lucinda, a decapitada, perdeu mãos e cabeça para a talaricagem. Deixava as mãos largadas por aí, mas a cabeça, sempre a carregava debaixo das axilas para dizer "com aquele rostinho, como poderia.". Já as rendas quarando no varal são as filhas levadas para crisma, nomes que nunca se escutam aqui pelo valão: Angélica, Eleonora, que escutei da batente da porta de serviço serem chamados para além da cozinha. E se não podia puxar um fio enquanto atravessava o quintal – em cada braço, um balde, pós expediente escolar, indo exausta até o poço buscar a água que minha mãe usaria para colocar as calças, lençóis, toalhas de molho –, imaginava seus rostos desfigurados por uma gota de óleo quente que decidiu fugir da frigideira.
Espectros da violência doméstica ou da luta de classes – aqui, também chamado de colonialismo – rondam os varais, acusando alguma acronia: seja a amputação de um membro ou a abstração do tempo. Os fantasmas, vê quem quer. São as gentes da vigília que enxergam os fantasmas. A vigília, de acordo com Elena, é a necessidade de expandir a própria vida. Nada tem a ver com o regime policialesco do patriarcado. Melhor citá-la por inteiro: "os homens transformaram a vigilância em atividade de sentinela, de carcereiro, de espião. A vigilância, porém, quando bem entendida, está mais para uma disposição afetiva de todo o corpo, uma expansão e uma germinação por cima dele e à sua volta." (Frantumaglia, p. 110). A vigília tem os olhos no cultivo, a simultaneidade que é a vida e a morte, e portanto, no movimento dos varais – e também nas ruas. É isso que faz Wertmüller acentuando o contraste entre as vestes do luto e os lençóis branquíssimos, a sombra destes, onde se escondem as vigilantes do bairro, e o sol que refletem: simultaneidade.
Sejam nos terraços, nas varandas, batentes ou quintais, as mulheres da vigília aguçam os sentidos. Minha vó sabia reconhecer as mudanças do agudo de Rosa, se era admoestação do pequeno ou se era socorro que pedia. Tinha o olfato afinado com o amadurecimento das goiabas. Tinha na pele a régua dos vendavais. E também minha mãe sofisticou seus sentidos na lama do quintal aprendendo a notar o que era esterco pro porco e o que era alvejante. Ambas, a vista treinada para as aparições espectrais e, óbvio, o tímpano tinindo com os timbres da canção.
Acontece que o ectoplasma – a sua consistência translúcida pra uns, invisível para outros – estabelece entre mães, trabalhadoras domésticas, uma gemelaridade. Somente espectros e mães, lavadeiras, costureiras, cozinheiras se enxergam mutuamente. E é isso que confere aos conluios entre os varais, alto grau de periculosidade.
3 - definições de complô
"Em princípio, o complô supõe uma conjuração e é ilegal porque secreto; sua ameaça implícita não deve ser atribuída à simples periculosidade de seus métodos, mas ao caráter clandestino de sua organização. Como política, postula a seita, a infiltração, a invisibilidade" (PIGLIA, algum ano aí).
Além de todas aquelas comparações ululantes de que complô é uma ficção potencial, uma intriga que se trama e circula (já não passou da hora do Costa Lima?). Piglia também confirma, o que todos já sabemos: para haver revolução é preciso que haja conspiração.
Mas, sim, revolucionários conspiram. E, aqui, tento responder: por que falamos tanto de nossas mães e avós? Mentira, seria mais: por que falo tanto de minha mãe, avó? Por que repito todas as histórias de minha mãe – as que ela é protagonista ou as que ela me contou? Acho que foi sempre isso: um encantamento, uma perplexidade com a radicalidade desses relatos, em especial, a radical solidariedade desses relatos.
Minha mãe nasceu nas enchentes de 1966 do Rio de Janeiro, ironicamente no dia de São Sebastião. Minha família perdeu a casa nas enchentes, a casa se foi junto do barranco do Morro do Viradouro. A família se dividiu pelas casas das amigas da minha vó, e a amiga que deu casa pra ela e sua recém nascida foi a mulher que batizou minha mãe. Assentada e com as crias seguras, minha vó conseguiu abrigo pra todos no Círculo Operário Trotskista dos Trabalhadores Navais do Viradouro. Minha mãe conta que andou pela primeira vez, no seu aniversário de um ano, sobre a mesa do refeitório.
Minha vó, nos anos de Brizola, por lavar as roupas das senhoras do PDT, se meteu de legalizar a sua casa que conseguiu às margens do valão e também as de suas amigas. Arranjou de colocar os filhos nas escolas integrais de Darcy Ribeiro e os filhos das vizinhas. E tem o samba e para o samba rolar é arranjar o terreno do barracão com o povo da estiva, surrupiar de pouquinho e pouquinho material das empreiteiras graças a seu contato com os trabalhadores da construção civil, costurar em mutirão as fantasias, arrecadar dinheiro pro material e instrumentos e criar ali, entre os pandeiros e cuícas, uma rede de solidariedade e formação que persiste por décadas e décadas, que persiste ao Rio de Janeiro e pelo Rio de Janeiro.
Certo que tem algo de uma ficção potencial aí, tenho certeza que tudo isso foi feito só porque ela sabia – como minha madrinha sabe – todos os nomes e ofícios de suas gentes, sabia não só dar remendo em trama de tecido, mas também em querelas e queixumes. Lembro muito bem que meu primeiro encantamento foi descobrir na boca de minha madrinha todas as palavras que explicam o mundo: defensoria pública, postinho, cuidado com a farda. E descobrir na boca e nos batuques inusitados de minha mãe– na máquina de lavar, na caixa de fósforo, panelas –, a canção.
Mas, para além do encanto, há o assombro pois me vejo, semanalmente, me perguntando: se eu, com três refeições ao dia, uma cama só pra mim, sinto que meu corpo não dá conta do capitalismo tardio, como pode elas, vivendo quando muito de uma refeição por dia, forrando-se de farinha, negociando com o comando e com a polícia militar passando pelo corredor lateral do quintal de casa, terem feito e mantido aquilo que entendo por lar – a cidade de São Sebastião? Como pode minha mãe, apenas com uma refeição escolar no estômago, ir pegar a água do poço, uma, duas, três vezes, pra minha vó desgastar seus vestidos no tanque, e ainda pular muro do sambódromo para assistir ao Milton, tomar corre do Dops, ir às reuniões do incipiente partido dos trabalhadores, mas, sobretudo, pintar, desenhar e montar alegorias fantásticas? Tudo isso, pra mim, é ainda inexplicável.
E tem uma coisa engraçada aí: há tempos ando achando insuportável essa literatura de álbum de família, cartões postais de avós imigrados, sabe? Mas acontece que minhas mulheres são conspiradoras, invisíveis, são raros seus retratos, afinal, é álbum de família o primeiro sinal de ascensão social. Não tenho uma foto dos varais de minha vó, de seu quintal, ou, ao menos, não de seus varais volumosos, repletos de roupas e fantasmas de outros, o que tenho é a foto do varalzinho, um arame farpado onde ela dependurava a roupa íntima da família, defronte a ele, minha mãe, Lauri, de jeans, na ponta esquerda, segurando Aline, primogênita de madrinha, Lucimar, filha da vizinha, Renata, filha de tia Lorena (ela, sendo a mais velha, empregada comprou uma máquina fotográfica), Cadico (irmão quase gêmeo de minha mãe, é ele, hoje, quem costura as fantasias das alas das baianas do Viradouro), Rodrigo também rebento de Lorena, e atrás o Jamelão e ao lado, o galão que minha mãe enchia quando voltava do colégio, e, às vezes, fim de tarde para tomarem banho. E contra tudo que digo, amo demais essa fotografia, único varal que tenho delas.