San Michele
1 (uma) poeta viva 2 poetas mortos 1 ensaísta viva e eu que não pisei no cemitério
Em cidades soçobradas e cemitérios náufragos, poetas permanecem unidos, é o que diz Megan Fernandes, poeta. Mas eu não sou poeta. Por isso, não parei para limpar um túmulo se quer no cemitério de San Michele. Fui direto para Murano, e do Vaporetto não assisti outro barco balançar uma onda esmeralda, apenas me digladiava com o moleque de jaqueta puffer por um lugar que desse para assistir torres rubras do século XIII despontarem, talvez, de uma onda esmeralda. E mesmo assim, quando vi a capela de tijolos brancos que marcava a chegada ao cemitério insular, só conseguia pensar se Diogo Mainardi seria enterrado ao lado de Pound, por afinidades políticas, o que não me comoveu o suficiente para deixar meu lugar no Vaporetto, por qual tanto batalhei, para ver os mortos que sorriem nas lápides venezianas ou Brodsky, que era o segundo motivo por qual estava ali: tinha gostado muito de Marca D'Água, mas não fui capaz de reler o livro antes da viagem porque um motoqueiro de Nova Iguaçu o havia roubado. Sem tê-lo fresco na memória, não teria o que conversar com o morto. Mas o Brodsky foi o primeiro motivo da Valeria Luiselli. Não à toa, o seu livro de ensaios sobre viagens abre com uma epígrafe do Brodsky, e segue, tendo como abertura, a busca dela pelo túmulo do russo em San Michele, que, ironicamente, não está enterrado entre seus conterrâneos, mas entre estadunidenses, ao lado de Pound. Pelo veneno que o russo lançou contra meu Rio de Janeiro, acho que mereceu isso aí.
É coincidência que duas escritoras radicadas nos Estados Unidos com origens latinas tenham escrito sobre o cemitério de San Michele? Sim! E apenas isso, mas fiquei pensando: por que não eu???? Nenhuma curiosidade, como pode, Júlia antes dos 30? Logo, você que foi a Praga apenas por um cemitério! Você pode até saber que nas lápides de San Michele, os mortos te sorriem, mas ninguém sorriu PRA VOCÊ! E tava lá o Visconti, perdeu essa oportunidade… O que você fez nos setes dias que esteve por lá, mulher!?
Primeiro, o albergue, em que me hospedei, pegou fogo! Então, mil perdões, se estava ocupada catando cinzas! Lidando com o fato de que fui eu a culpada do incêndio, pois ardia em 38 graus de febre para cima! E isso, nem Veneza era, era Mestre. Então, em todos os dias que lá estive precisava ir e retornar. Tudo bem, eu amava passar pelo porto de Marghera e pelo complexo petroquímico de Marghera, todos os dias, como se estivesse em casa. Depois de dias, em países em que nada entendia da língua, me agarrei fortemente a este sentimento de retorno ao lar. E era carnaval, e era meu aniversário, e eu ardia em febre.
Cheguei a Veneza, exatamente, no dia do meu aniversário, 25 de fevereiro. Vinha no trem noturno de Viena, no meu vagão: uma família turca de três, um italiano que acabava de chegar de uma empreitada fracassada no Vietnã e euzinha. Outros vagões estavam vazios, mas não o nosso. Foi uma noite longa e de forçada intimidade. Quando, finalmente, dormi, dormi com os pés da mãe turca em meu rosto com meus pés em seu rosto. No dia seguinte, eles me levariam para almoçar, inaugurando minha série de refeições gratuitas pela Itália.
Sebald pegou o mesmo trem. Em seu relato, há toda uma paisagem montanhosa que antecede a chegada à cidade dos canais, um ínterim de planícies e riachos. Mas, sobretudo, deslizamentos de terra, fragmentos de rocha, prédios desmoronados, pilhas de escombro e entulho, cá e lá, acampamentos de desabrigados. Tenho certeza que ele inventou essa paisagem, como era do feitio dele. E nada sobre o Porto Marghera! Se o tivesse feito, teria falado do gás cloreto de vinila, desde muito conhecido como cancerígeno, mas considerado pelas administradores do porto apenas como uma malefício facilmente compensado com gratificação, os flaire, que eram três, os silos de armazenamento, alguns poucos com trigo, a maioria com ácido sulfúrico, e todo o pó, muito pó de zinco, o vapor, muito vapor, que também era névoa e não era névoa, e os homens com suas faixas fluorescentes no peito, advindos da paróquia local. E não precisaria inventar nada, economizaria em trabalho.
Verdade, que a luz do fim de inverno aquecendo as roupas sobre os canais me encantou, mas foi a diferença entre esta luz e a luz de Porto Marghera que prendeu minha atenção. Isso, e óbvio, os pichos contra transatlânticos. Por isso, nenhuma foto de cemitério, pontes ou refeições, mas alguns santos, alguns varais, um padre se trocando que me encara enquanto o investigo o ancoradouro dos maconheiros, o mascarpone e a balinha de mel que comprei no mercado em Mestre, os pontos finais de ônibus que ia depois de pegar o ônibus mais lotado do ponto do Porto Marghera, e o joalheiro judeu no bairro hebraico. Era isso que tinha como casa, ou que buscava como casa depois de tanto tempo longe da minha: cidades que cismam em esconder que são cidades, especificamente, industriais, ainda mais, especificamente, petroquímicas. Veneza insiste em dizer que é só canal, o Rio, em dizer que é só oceano.
No meu último dia em Veneza, quase em frente ao ponto do ônibus que me levaria de volta a Mestre, vi uma lancha partir da Igreja de Santa Maria de Nazaré levando um caixão. Outras lanchas iam ao seu encalço, lotadas de coroas de flores. Corri até a ponte mais próxima para assistir ao cortejo. Foi somente aí que me interessei pelos mortos da cidade, porque se deslocam.
o poema da Megan Fernandes: https://www.poetryfoundation.org/poetrymagazine/poems/159241/pound-and-brodsky-in-venice
o ensaio da Luiselli está no Sidewalks (tem epub aí)
meu deus que coisa linda